Cirurgias de afirmação de gênero estão em alta nos EUA

Tendência acompanha aumento da cobertura dos procedimentos por seguros de saúde no país.

Uma análise nacional de registros médicos dos EUA feita por pesquisadores da Universidade Johns Hopkins detectou uma alta no número de cirurgias de afirmação de gênero no país, acompanhada por um aumento no acesso aos procedimentos por indivíduos transgênero propiciado por serviços de seguro de saúde públicos americanos, como Medicare e Medicaid, ou seguradoras privadas.

O estudo, publicado nesta quarta-feira no periódico científico “JAMA Surgery”, é um dos primeiros a investigar tendências nas cirurgias de afirmação de gênero, historicamente pouco compreendidas devido à falta de dados sobre elas. Uma dessas tendências reveladas pelos cientistas é a completa ausência de mortes ligadas aos procedimentos ao longo de todo período coberto pela análise, sugerindo que, ao contrário do que dizem alguns críticos, eles são muito seguros.

– Todos campos da medicina têm áreas que podemos melhorar – justifica Brandyn D. Lau, professor do Departamento de Radiologia e Ciências Radiológicas da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins e diretor de qualidade e pesquisas do recém-aberto Centro para Saúde de Transgêneros da instituição. – Sem dados específicos sobre os pacientes transgênero, não podemos saber o que estamos fazendo certo e o que precisamos melhorar, e este estudo é uma tentativa de abordar o problema com os melhores dados que temos disponíveis agora.

Indivíduos transgênero têm uma identidade de gênero que difere do seu sexo biológico no nascimento. Para lidar com esta incongruência, muitos dos estimados 1,4 milhão de adultos transgênero nos EUA buscam intervenções de afirmação de gênero, que incluem terapias hormonais e cirurgias genitais, dos seios e de contorno facial.

Quando a Lei de Acesso à Saúde, editada em 2010 e apelidada Obamacare, baniu a discriminação de pacientes com base em sua identidade de gênero, os regulamentos estaduais e federais das seguradoras se voltaram para uma maior cobertura de tais intervenções. Mas, conta Lau, pouco se sabia sobre quantos procedimentos cirúrgicos foram realizados e como eles foram pagos.

Para investigar isso, Lau, junto com Joseph K. Canner, pesquisador sênior em gerenciamento de dados e codiretor do Centro de Pesquisas sobre Resultados de Cirurgias da Universidade Johns Hopkins, e outros colegas fizeram buscas na Amostra Nacional de Internações (NIS, na sigla em inglês), maior banco de dados sobre o tema nos EUA. Nele estão mais de 20 anos de informações por amostragem sobre procedimentos específicos realizados por mais de mil hospitais americanos todos os anos.

Os pesquisadores esquadrinharam a NIS por registros que combinassem códigos padrões de diagnóstico para transexualismo ou desordem de identidade de gênero e códigos de procedimentos para uma gama de intervenções cirúrgicas associadas à afirmação de gênero, incluindo a remoção ou construção de genitália e seios. Mas como a NIS mudou seus procedimentos de amostragem em 2012 – de angariar dados de 20% dos hospitais participantes para obter dados de 20% dos pacientes que receberam alta em todos hospitais -, os pesquisadores compararam dados de três períodos de tempo: 2000-2005, 2006-2011 e 2012-2014.

Ao todo, a NIS registrou 37.827 atendimentos médicos identificados com códigos de diagnóstico de transexualismo ou desordem de identidade de gênero entre 2000 e 2014. Cerca de 11% desses atendimentos também envolveram cirurgias de afirmação de gênero. Aproximadamente 57% dos pacientes eram brancos, com uma idade média de 38 anos. De modo geral, o número total de procedimentos quase quadruplicou desde o início do período avaliado, em 2000, ao seu fim, em 2014. Em todo esse tempo, não foram observados episódios de mortes nos hospitais.

Em uma análise separada para cada um dos períodos mais curtos de tempo, os pesquisadores descobriram que cerca da metade dos 4.118 pacientes que se submeteram às cirurgias de afirmação de gênero pagou por elas entre 2000 e 2005, e aproximadamente 65% também tiraram o dinheiro para bancar o procedimento do próprio bolso entre 2006 e 2011.

Mas a percentagem dos pacientes que bancaram a cirurgia eles próprios – isto é, não cobertos por seguros de saúde públicos ou privados – diminuiu de 2012 a 2014, com apenas 39% pagando pelos procedimentos no último ano analisado, com o restante indenizado pelo Medicare, Medicaid ou seguradoras privadas.

Além de identificar as tendências nas formas de pagamento e cobertura, o estudo mostrou que é possível obter informações sobre pacientes transgênero e os procedimentos usando bancos de dados nacionais, destacam Lau e Canner. Segundo eles, este tem sido um desafio potencial na área, já que informações sobre a identidade de gênero não são normalmente coletadas como parte dos prontuários médicos dos pacientes.

Assim, de acordo com os cientistas, se os pacientes fossem rotineiramente inquiridos sobre sua identidade de gênero e ela fosse documentada nos prontuários médicos de forma padronizada, isso poderia aumentar o valor de outros conjuntos de dados para pesquisadores que busquem tirar conclusões sobre os resultados e disparidades entre os pacientes transgênero da mesma forma que outros levantamentos revelam diferenças baseadas em idade, etnia ou sexo biológico.

– Ao explorar bancos de dados nacionais, sempre temos que ser cautelosos com relação à confiabilidade dos resultados ligados aos procedimentos – acrescenta Lau. – Mas a mortalidade normalmente é um resultado altamente confiável, e ficamos animados em ver que não foram registrados episódios de mortes associadas a pacientes internados para cirurgias de afirmação de gênero.

Lau e Canner sugerem ainda que as informações que estão sendo coletadas em centros dedicados aos cuidados de pacientes transgênero, como o recém-inaugurado pela Johns Hopkins, serão um passo significativo nesta direção.

– Eventualmente, ao colocarmos estes procedimentos na mesma esfera virtual de todos outros tipos de cirurgias, poderemos deixar de ficar contando uma a uma quantas operações de afirmação de gênero foram feitas e quais seus resultados clínicos foram registrados – diz Canner.

Fonte: Jornal O Globo