Aos 92 anos, Armando fez um pedido: a medicina tinha de ajudá-lo a morrer

O Armando é um desses vigilantes anônimos que, de carinho em riste, não deixam passar nada que diga respeito ao objeto do seu afeto, ainda que silencioso e anônimo. Não o conhecia até que ele anunciou, por e-mail, que perguntara ao seu clínico se ele achava razoável marcar uma horinha comigo para debater algumas coisas que o angustiavam na plenitude da sua lucidez, aos 92 anos de uma vida bem vivida. Curioso com a iniciativa, combinei um encontro no hospital e, na hora aprazada, lá estava ele, elegantemente vestido, querendo pagar antecipadamente a consulta.

Bastante trêmulo por uma doença neurológica e levemente ofegante pelo enfisema, pediu um tempo para se recompor, sempre preocupado que estivesse ocupando um tempo que ele fantasiava ser muito precioso, sem imaginar o quanto eu valorizaria o que estava por vir.

Descreveu suas limitações decorrentes da perda da sensibilidade fina, que o impedia de escrever ou digitar, e que fazia do barbear uma operação de risco.

E, então, desfiou um rosário de frases de crônicas que escrevi entre 2012 e 2017, em que reiteradamente tratei do envelhecer com dignidade ou da diferença entre viver e simplesmente durar, e que ele então invocava para construir a argumentação de um pedido evidente, mas nunca explicitado: a Medicina que tinha sido tão pródiga em recursos para fazê-lo chegar a essa idade, tinha agora que ajudá-lo a morrer. Para reforçar seu pedido, ainda comentou pesaroso: “O senhor não imagina o quanto me incomoda perceber que sou um fardo para minha família. Se ao menos tivesse ficado caduco, eu não sofreria tanto!”.

Não resisti lhe perguntar por que escolhera a mim, entre tantos médicos, para essas ponderações, e ele foi duma simpatia comovedora: “Acho que, de tanto concordar com as suas ideias, passei a acreditar que o senhor escrevia pra mim!”.

“Acontece, seu Armando, que o velho inútil que descrevi naquelas crônicas não combina em nada com a sua cabeça lúcida e inteligente, e como o senhor não vai morrer antes de morrer, nós só precisamos dar uma utilidade ao seu durar. A propósito, eu tive um avô maravilhoso, que me estimulava muito e me distinguia com um afeto que marcou minha vida. Passados já tantos anos, ainda sinto muito a falta dele. Então, queria lhe perguntar: o senhor se importaria de ser meu avô?”.

Com um choro bem encaminhado, interrompi: “Mas nem pense em ser um avô decorativo, porque temos muitas coisas para fazer juntos. E a primeira tarefa será um relatório quinzenal das suas ideias, porque eu vou precisar muito delas”.

Secando as lágrimas com as costas da mão trêmula, ele se antecipou: “Então, vou ter de conseguir alguém que digite pra mim!”.

Quando já bem chorados, nos despedimos, e ele reconheceu a transformação: “Obrigado, doutor, mas que vergonha! Vim aqui só para me queixar da vida, e nem tinha percebido que ela ainda me queria!”.

Fonte: Jornal Zero Hora – 01/10/2017 – J. J. CAMARGO